Trip Queijeira – parte 2

Depois de 16 horas cortando a Península Ibérica, cheguei a Bordeaux. Uma viagem de trem noturna onde a “irreclinóvel” poltrona virou cama. Mal sabia que tal descanso sagrado seria de grande importftncia para os próximos insanos dias.


Primeira vez na França, tive uma grande amiga e a melhor anfitriã que poderia imaginar, Monica Pessoa. Uma carioca que foi morar na França e, através de ótimos cursos em Paris, se especializou em queijos e vinhos, e vem fazendo um belíssimo trabalho em Bordeaux.

Entre várias visitas, destaco o Capucins {mercado municipal), com toda aquela farta quantidade e variedade de queijos franceses e de outros países. Nem preciso dizer que ali foi sacramentada a minha falência financeira. Dá vontade de provar todos e comprar tudo.

França: quando se fala de queijo, 1 ° país que vem a nossa mente

A França produz quase mil queijos entre as quatro mil variedades produzidas no mundo. Porém, o país é ultrapassado por outros nas seguintes questões: maiores produtores (Estados Unidos e Alemanha), maiores exportadores (Alemanha e Holanda) e consumo per capita (Grécia seguida bem próxi­ma da França).

Mas é consenso que os queijos franceses são os melhores globalmente, pois oferecem uma incrível variedade de tipos e com altíssimo padrão de qualidade. Um lugar de merecido destaque foi o Abbaye de Echourgnac, um mosteiro de freiras beneditinas que produzem há gerações belíssimos queijos de leite cru de ovelhas, como o Trappe Echourgnac, curado e lavado em licor de nozes.

Durante a visita, me afastei um pouco e fui entrando por aqueles seculares muros de pedra, admirando toda aquela paz e beleza do lugar, tirando fotos. Logo notei, em uma casa maior, equipamentos típicos de uma queijaria, me aproximei e, chegando à janela para “xeretar”, vi uma freira senhorinha. Acenei, todo feliz. Ela, por sua vez, e para a minha surpresa, acenou de volta sorrindo docemente e me convidou para entrar. Após sorrisos e abraços, surgiram outras freiras que nos ajudaram como intérpretes, mas pela reação delas, eu não deveria estar dentro da queijaria. Fui presenteado com um queijo, um queijo abençoado, e fui embora quase levitando por minutos de tanta paz e confraternidade.
Acordei antes do sol e parti para pegar o ônibus. Às 8h50, já estava descendo naquela congelante manhã de Tours, cidade palco do último Mondial du. Fromage. Onde nosso brasileiríssimo Canastra (produzido pelo Guilherme Ferrei­ra) recebeu medalha de prata, realizando urna proeza inédita.

No ponto marcado, à procura de um amigo que ainda não conhecia

Indicado por Elisabeth, excelente queijeira francesa à frente da Queijo com Sotaque {SC), o anfitrião Martin Jouve logo se mostrou um grande apaixonado pelo Brasil e pelo samba carioca. Martin é um jovem engenheiro francês que há dois anos resolveu largar a profissão pa1·a se especializar como fromager através de vários cursos em Paris. Atualmente é gerente de uma fromagerie. Partimos direto para uma fazenda na mítica vüa de St. Maure, na fazenda de proprie­dade de Richard Lecourt, responsável pelo seu premiadís­simo St. Maure de Touraine. Fornos muito bem recebidos por um sorridente e agitado fazendeiro, que, mesmo com todo aquele frio, fez questão de me mostrar cada etapa do seu trabalho.

Nos dirigimos a um grande galpão onde mais de 300 cabras comiam o seu café da manhã, e no caminho percebi uma estranha máquina agrícola que nunca havia visto no Brasil. Martin se desdobrava como intérprete para traduzir a animada conversa. Perguntei o que as cabras comiam, pois percebi que era diferente. Richard riu e falou que só depois explicaria.

Cabra é um animal muito cu1ioso e ressabiado, que normalmente se aproxima para nos cheirar e mordiscar. Mas ali senti algo especial no comportamento; elas estavam felizes, mansas e carinhosas. Comentei sobre isso, e ele, mais uma vez, soltou aquele sorriso do tipo: “Sim, eu sei”.

Em outro grande galpão, havia três enormes máqui­nas que me espantaram. Ali, muito orgulhoso, começou a explicar a refeição das cabras. Contou que 95% vêm da própria fazenda, que aquelas máquinas faziam a colheita com determinado grau de sofisticação e que a outra máquina estranha era responsável por embalar toda a mistura para proteger do tempo e diminuir ao máximo o oxigênio, para evitar fermentação. Na horta, ele mostrou uma enorme plantação de uma espécie de mostarda e uma florzinha que, junto com o feno, era a melhor mistura feita por ele depois de muitas pesquisas e investimento. Afinal, para um bom leite, a boa alimentação é primordial.

Fomos até a queijaria e depois do tour por todo o seu processo interno, uma surpresa: um convite para fazer o meu St. Maure! Lá fui cortar o coalho, colocar na fôrma, desenformar, passar no sal com carvão vegetal, colocar a vareta e levar para maturação. Uma honra, ainda mais sabendo depois que o Richard tem o troféu Chévre dor (Cabra de Ouro), entregue ao melhor dos melhores produtores.

Atualmente, 45 queijos franceses são certificados com Denominação de Origem Protegida (DOP) – AOP Appllation d’Origine Protégée -, entre eles: Brie, Camembert, Chevrotin, Comté, Morbier, Reblochon, Roquefort, St. Maure, Valençay.
No Brasil, esse cenário e luta pelo reconhecimento está começando. Com muito trabalho, já temos o Queijo do Serro (2011) e o Canastra (2012) como os primeiros queijos com Indicação Geográfica (IG). Sendo seguidos pelo Queijo Coalho, Serrano, Colonial, Queijo do Marajó, entre outros que estão em processo de obter suas certificações de origem.

Serro, a França está ao lado

Numa recente palestra, na cidade de Diamantina/ MG, na faculdade UFVJM, Tulio Madureira contou um pouco da sua história de produção do excelente Queijo do Gir, da cidade do Serro. Ao final, presenteou o professor e organizador do evento, que, no dia seguinte, serviu aos demais professores, entregando um bom naco a um pro­fessor recém-chegado de um longo período de Doutorado na França, pois este queria levar para casa. E qu.al não foi a surpresa dessa família ao comer: tão acostumados aos quei­jos franceses, descobriram que aquele excelente e disputado pedaço de queijo não tinha vindo da Europa, mas sim da cidade vizinha, Serro.


HARMONIZANDO QUEIJO & CERVEJA

Na taça, uma English Pale Ale produzida pela nova cervejaria carioca W-Kattz.

Uma cerveja deliciosa, sequinha e de sabor equilibrado. Adocicado e elegante no início e levemente amargo no final, combina em total sintonia com o ótimo Queijo do Gir.

Na tábua, um legítimo representante das tradições seculares mineiras. Produzido na pequena cidade do Serro, com leite cru de vacas zebuínas originárias da Índia, que, por serem muito rústicas e fortes, demandam pouca vacina, deixando um leite puro com uma flora microbiana muito forte que aparece em toda a sua exuberância ao longo dos seus 45 dias de maturação. De sabor adocicado no início, que remete a nozes e castanhas (devido à concentração da lactose), depois se revelando mais salgadinho com a eclosão dos cristais de sal e, no final, muito umami com forte e deliciosa presença de boca.


Data de publicação: Junho/2016

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