Fermentando o mercado queijeiro

Tive o prazer de conhecer o Fernando Oliveira e a sua simpática lojinha, recém-aberta e recheada de sabores da fazenda, no início de 2014. Já era tarde e as portas já estavam fechando, mas fiz questão de entrar. Assim, inebriado por todo aquele mundo de aromas, fiquei maluco! Mal sabia eu que estava entrando num túnel do tempo, num caminho sem volta, recordando a infância nas fazendas da família e a extinta fábrica de laticínios.

A lojinha era A Queijaria (SP). E ali mesmo, com a loja fechando e sem saber como comprar e levar todos os queijos na viagem de volta de ônibus para o Rio, fiquei sabendo de um curso de queijo. Retornei carregado de queijos e com aquela vontade insana de fazer aquele misterioso curso. “Mas você vai fazer agora um curso de queijo?! Pra quê?’: diria minha esposa.

Um mês depois, voltava para o curso. Visitei fazendas, provei muitos queijos, fiz novas amizades e um novo mundo se revelou para mim. Sim, estava ocorrendo uma revolução nos nossos campos brasileiros! Uma incrível paixão e uma inventividade por parte dos queijeiros, que não via na época que morava no interior de MG. Devo muito ao Fernando por abrir esse novo horizonte para mim.

Após, fizemos alguns trabalhos juntos, como as palestras no Degusta Beer & Food 2014 e o estande no Mondial de La Biere Rio, e idealizamos o 1° Fermentando A Queijaria. Um grande encontro dos queijeiros de várias partes do Brasil e dos cervejeiros, durante dois dias em SP, com ampla grade de palestras e muito queijo com cerveja na presença dos produtores nas barracas harmonizadas.


Conte-nos um pouco da sua história, sua paixão pelos queijos nacionais e como começou A Queijaria.
Fernando: Sempre comi mais queijo do que bebi água. Quando criança, viajava com meu avô comprando queijos nas fazendas, maturando em casa. Ficavam bem fortes, então comíamos escondido, para desespero da minha avó. Ao resgatar essa história, minha memória afetiva, nasceu o projeto Queijo Artesanal em junho de 2008. Inicialmente com site de mesmo nome e, em abril de 2013, com a loja física na Vila Madalena. Hoje já são mais de 200 queijos lançados de 10 diferentes estados, alguns inclusive que nem vendo mais, pois já ganharam robustez e atingem diversos mercados sem minha ajuda. E assim vou lançando mais e mais famílias!

Andando pela Europa, nos encantamos com lojas como as fromagerie francesas) dedicadas aos queijos locais. Verdadeiros santuários dos queijos, muito diferentes dos queijos que todo turista acaba comprando nos supermercados do velho continente. Pelo belo trabalho que faz à frente da Queijaria, garimpando, divulgando e valorizando os pequenos produto­res nacionais, você acredita que, no nosso país, poderemos um dia ter um cenário parecido? Com mais lojas dedicadas aos queijos artesanais nacionais e encontrando reconhecimento por parte da população e principalmente com o apoio dos ór­gãos do governo?
Fernando: Não tenho dúvida disso. Teremos queijarias especializadas espalhadas por todo o Brasil Já temos muito reconhecimento da opinião pública, da mídia e recentemente do poder público. Agora, sem dúvida, só vai ficar nesse mercado quem inovar, quem não atuar como simples revendedor. Queijo é sabor, história, experiência. É muito diferente de vender camiseta, por exemplo, onde a cada canto encontramos as mes­mas marcas, modelos e cores, grosso modo. Para quem gosta, fica o mantra que gosto bastante: quem cria, transforma, quem cópia, deforma.

Aproveitando, explique um pouco as dificuldades que encontrou no início, e acredito que até nos dias de loja, tio que se refere a nossa tacanha legislação para o setor. Onde diversos queijos se podem circular dentro das fronteiras do seu estado. Onde a legislação não reconhece práticas tradicionais de produção e nem o leite cru.
Fernando: A legislação é muito controversa, mas sem­pre encontrei muito boa vontade dos órgãos competentes para regularizar a situação da produção artesanal brasileira. Temos um problema mais cultural e político a se resolver e ele precisa de profundidade e debate. Isso tem acontecido bastante no último ano.

No segundo curso que fiz cou1 você, aprendi um pouco mais sobre cura dos queijos e pude conhecer a sua câmara de maturação. Explique para a gente, rapidamente, o que você faz naquela sala secreta e conte um pouco sobre o fantástico processo de afinagem que faz com alguns queijos, desenvolvendo nossos produtos, como o Santinho e o Dionísio.
Fernando: Como o Zé Mário da Canastra diz, não tem segredo para fazer queijo. Eu aproveito e digo: não tem segredo para finar queijos. É só estudar bastante, trabalhar com dedicação, disciplina e experimentar muito, errar muito, jogar muito queijo fora para descobrir joias. São diversas as técnicas: câmara artificial com controle de temperatura e umidade, sala de maturação natural fria, sala de maturação quente, cavernas subterrâneas naturais, secagens, lavagens, etc. Hoje já tenho cinco microclimas diferentes em nosso Centro de Maturação no interior de SP. É só o começo!

Poderíamos estender muito essa prosa, mas fica o convite para uma próxima. Terminando, no mercado cervejeiro também temos a classificação, por muitos considerados equivocada, de “produto artesanal”. Em relação aos queijos, vejo o mesmo movimento que ocorreu no início da revolução cerve­jeira, com a nomeação de cervejas premium e depois cervejas artesanais, até cervejas gourmet já vi por aí. Para você, o que seria considerado “queijo artesanal”? E qual a vantagem dessa classificação para o consumidor e produtor?
Fernando: Temos queijos artesanais tradicionais, com o modo de fazer passado por várias gerações, mas temos também os novos queijos, resultado da inventividade do brasileiro e da enorme biodiversidade que temos. Um queijo se mantém artesanal quando o processo produtivo tem escala condizente com o tamanho da propriedade e poucas pessoas envolvidas nesse processo (geralmente a família e alguns funcionários), controle total do proprietário sobre todas as etapas, tecnologias e máquinas que não se­jam simplesmente operadas por pessoas, ou seja, precisa de mão na u1assa. O consumi­dor precisa de informação e verdade, mas muita gente se aproveita indevidamente do conceito de artesanal como ferramenta de marketing. É um absurdo!


HARMONIZANDO QUEIJO & CERVEJA

Criado na parceria entre a Fazenda Santa Luzia (SP) e a Cervejaria Bamberg (SP), leva o nome Braukäse, termo alemão que podemos traduzir como “queijo do cervejeiro”.

Produzido com leite cru de vaca, massa semicozida, com interior macio e consistência amanteigada, sabor suave e casca amarronzada pela presença da cerveja. Maturado 40 dias, leva na produção a premiadíssima Bamberg Rauchbier.

Na cerveja, maltes defumados em madeira trazem intenso e delicioso sabor defumado à boca. Notas de caramelo e um leve amargor do lúpulo fecham o conjunto. Toda essa combinação nos propicia um final seco em médio corpo que vai muito bem com o amanteigado do queijo e sua leve nota de defumado.

Braukäse, a união de dois apaixonantes e revolucionários mundos que têm tanto em comum e muito que apresentar aos brasileiros. Afinal, como já dizia o sábio Raul Seixas, “ninguém vence uma guerra brigando sozinho”.


Data de publicação: Dezembro/2015

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